Tecnologia pode influenciar habilidades cognitivas
Pesquisa indica que jogos eletrônicos estimulam as chamadas Funções Executivas, provocando efeitos globais sobre o desempenho escolar
Por Silvio Henrique Fiscarelli, para a coluna Pesquisa Aplicada, na Nova Escola
Na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), semanalmente, ao final das atividades realizadas em nosso projeto de uso de tecnologia educacional com crianças com dificuldades de alfabetização, é recorrente algum pai se aproximar e perguntar sobre o progresso e o comportamento de seu filho: “ele faz todas as atividades?”, “está se comportando bem?”, “fica sentado na cadeira?”. E geralmente completa: “na escola, o professor disse que ele não para sentado na carteira” ou “o professor disse que ele enrola e não faz as atividades”. O interessante é que aquelas perguntas e falas me soam estranhas pois raramente temos que chamar a atenção de algum aluno por ter comportamento inadequado durante as atividades.
Aparentemente, as mesmas crianças que na escola apresentam um comportamento menos disciplinado e menor comprometimento com as atividades escolares se transformam em “anjinhos” dedicados durante as nossas sessões. Por quê?
A primeira e mais fácil resposta seria atribuir o fascínio que a tecnologia gera na maioria das crianças; uma segunda explicação complementar seria um certo grau de intimidação das crianças pelo fato de não estarem em uma sala de aula tradicional e com pessoas que não eram de seu convívio diário.
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Tais argumentos, embora plausíveis, na minha opinião não se sustentam. Primeiro, todos os participantes do projeto tinham acesso a algum tipo de equipamento tecnológico em casa, como computador, tablet ou celular. Ou seja, o computador não era uma novidade capaz de, por si só, manter uma motivação extrínseca. Segundo, estar em um ambiente incomum e com pessoas desconhecidas pode gerar impacto durante algum tempo, mas depois de algumas semanas esse estranhamento inicial acaba por se tornar algo habitual. Além de tudo, as crianças estavam ali realizando atividades relacionadas à aprendizagem de língua portuguesa e matemática, até certo ponto, semelhantes às realizadas na escola. O que explicaria, então, essa diferença de comportamento?
Talvez, um dos caminhos para encontrar a resposta para essa questão esteja em uma pesquisa que envolve neuropsicologia e tecnologia, realizada por um conjunto de pesquisadores norte-americanos e divulgada na revista Nature, em 2016. A pesquisa aponta que os jogos eletrônicos podem ter uma influência positiva sobre as chamadas Funções Executivas, que são habilidades cognitivas diretamente responsáveis por controlar nossa forma de pensar, nossas emoções e nossas ações.
A pesquisa, que envolveu 583 crianças do segundo ano do Ensino Fundamental, mostrou que o uso de jogos eletrônicos durante 20 minutos por semana, em um período de quatro meses, melhorou o rendimento delas em leitura e matemática, em comparação com as demais, que não utilizaram jogos. Tais resultados geram evidências de que o estímulo das Funções Executivas provoca efeitos globais sobre o desempenho escolar. (WEXLER, B. E. ET AL.,2016). Os 4 jogos utilizados foram elaborados especificamente para a pesquisa. O primeiro tinha como objetivo trabalhar a atenção focada, a inibição de resposta, a flexibilidade cognitiva e memória de trabalho, ou seja, a Função Executiva de maneira geral. O segundo, abordou a formação de categorias como letras, números, animais, plantas, entre outras. O terceiro, reconhecimento de padrões, tais como padrões de cor, geométricos e numéricos. O quarto jogo buscou explorar a memória de trabalho, solicitando a recuperação de sequências numéricas, grupos de objetos ordenados e também distribuídos espacialmente.
Embora o termo Funções Executivas tenha sido introduzido em 1982 por Muriel Lezak, a autoregulação dos processos mentais e emocionais foi alvo de investigação de teóricos consagrados, como Luria (1966) e Piaget (1976), que estavam preocupados em compreender funções fundamentais para a aprendizagem, como a memória, a atenção e a concentração.
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Embora haja uma série de divergências entre os teóricos que investigam as Funções Executivas, a maioria admite que existem pelo menos três categorias de funções executivas: o autocontrole, a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva.
O autocontrole, também chamado de Inibição do comportamento, compreende a capacidade de conseguir resistir contra a vontade de fazer algo tentador para privilegiar uma outra ação desejada. Essa Função ajuda as crianças a permanecerem atentas e concentradas durante a realização de suas atividades, a agirem de forma menos impulsiva e a pensar antes de agir. Na sala de aula, o autocontrole pode consistir em não conversar durante a aula, realizar as tarefas propostas, prestar atenção durante a explicação do professor, entre outros comportamentos altamente desejados no ambiente escolar.
A memória de trabalho ou memória operacional consiste na capacidade de conservar várias informações simultaneamente na mente. Desenvolver a memória de trabalho ajuda na realização de cálculos mentalmente, na formação de palavras durante a fase de alfabetização, na formação de frases coerentes, na associação entre conceitos e até mesmo na articulação entre ideias e argumentos.
A flexibilidade cognitiva, de maneira geral, envolve a habilidade de adaptar-se às exigências de um determinado contexto e a pensar de forma criativa para solucionar demandas variadas. No ambiente escolar, ela implica na capacidade de aplicar os conhecimentos em contextos diferentes, isto é, adquirir a competência de identificar e aplicar regras e procedimentos em situações semelhantes, mas não idênticas. Podemos dizer que a flexibilidade cognitiva envolve a transferência do conhecimento e das habilidades para além das suas situações iniciais de aprendizado.
Embora em nosso grupo de pesquisa ainda não tenhamos feito nenhuma investigação que envolva diretamente as Funções Executivas, tendo a acreditar que elas podem nos ajudar a compreender a diferença de comportamento das crianças durante as atividades no projeto e na escola, conforme relatado pelos pais. Isso nos leva a crer que, além de uma alternativa mais lúdica de apresentação dos conteúdos escolares, a tecnologia também parece influenciar comportamentos propícios para que a aprendizagem aconteça, como os já citados autocontrole, memória de trabalho e flexibilidade cognitiva.
*Silvio Henrique Fiscarelli é mestre e doutor em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e professor na mesma instituição. Realizou pós-doutorado na área de Educação e Tecnologias.
Para saber mais:
Lezak, M. D. (1982). The problem of assessing executive functions. International Journal of Psychology, 17(1-4), 281-297.
Luria, A. R. (1966). Human brain and psychological processes. New York: Harper and Row
Piaget, J. (1976). A equilibração das estruturas cognitivas: Problema central do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar.
Wexler, B. E. et al. Cognitive Priming and Cognitive Training: Immediate and Far Transfer to Academic Skills in Children. Sci. Rep. 6, 32859; doi: 10.1038/srep32859 (2016).
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