O papel da família e da escola na redução das desigualdades de gênero
Diversos estudos mostram como as atitudes de pais e professores afetam as expectativas, a autoestima e o desempenho educacional das meninas
Por Priscilla Albuquerque Tavares, para a coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola
A disparidade de renda entre homens e mulheres é tema recorrente no debate em todo o mundo. No Brasil, os salários das mulheres são, em média, 20,5% menores do que os dos homens, segundo dados da PNAD de 2018. A principal razão para essa desigualdade são as diferentes escolhas profissionais entre gêneros. As carreiras que pagam melhores salários, como a engenharia, são tipicamente escolhidas pelos homens; enquanto as mulheres preferem profissões como a enfermagem, que auferem salários mais baixos. Mas, o que explica essas escolhas distintas? Como são formadas as preferências de meninos e meninas pelas diferentes profissões?
Diversos estudos mostram que as atitudes de pais e professores podem afetar o desempenho educacional de meninos e meninas, bem como as crenças sobre suas capacidades e expectativas sobre o futuro, influenciando suas escolhas pessoais e profissionais. Dossi et. al. (2019) mostram que meninas que cresceram em famílias que apresentam preferências pelos filhos meninos apresentam desempenho pior em matemática do que as outras meninas. Os autores definem as famílias que preferem meninos como aquelas cujo número de filhos é maior quando o primeiro filho é uma menina ou famílias que tendem a não ter mais filhos quando ganham um menino.
Enquanto isso, meninos que cresceram em famílias que apresentam preferências pelas filhas meninas não sofrem prejuízos em aprendizado quando comparados a outros meninos. Isso sugere que as meninas são mais suscetíveis a atitudes potencialmente prejudiciais.
Os mesmos autores mostram que a socialização em casa explica uma parcela importante das disparidades acadêmicas entre os gêneros. Os pesquisadores classificam as famílias segundo seus valores em relação aos papéis de gênero. Famílias cujas mães apresentam alto grau de concordância com as afirmações “o lugar de mulheres é em casa e não num escritório”, “é muito melhor para a família se o homem realizar o trabalho fora de casa e a mulher cuidar da casa e da família”, “mulheres são mais felizes se elas ficam em casa e cuidam dos filhos” são consideradas famílias com valores de gênero tradicionais. Meninas que crescem nessas famílias possuem menores notas em matemática, provavelmente, porque formaram a crença de que mulheres devem desempenhar papéis diferentes dos homens, que não estão associados ao intelecto. Crianças (meninos e meninas) educadas nesse tipo de família tendem a reforçar esses valores quando chegam à adolescência, reproduzindo ideias como “competir com um menino na escola pode tornar uma menina impopular entre os garotos” ou “uma garota não deve deixar um menino saber que ela é mais inteligente do que ele”.
Esses valores, no entanto, não são construídos apenas no ambiente familiar. A escola também é uma fonte de estereótipos que prejudicam as meninas. Deaux e LaFrance (1998), por exemplo, mostram que é comum a crença entre professores e professoras de que meninos são mais inteligentes e meninas precisam estudar bastante para compensar. Ou que os meninos se notabilizam pela matemática e ciências, enquanto as meninas são melhores em ciências humanas. A influência dos estereótipos construídos na idade escolar é forte e persiste na vida adulta: segundo Bordalo et. al. (2019), mulheres confiam menos em sua capacidade de responder corretamente a perguntas sobre um assunto tipicamente masculino (carro, esportes) do que tipicamente feminino (culinária, artes). O mesmo não ocorre com os homens.
O papel da escola também passa pelas atitudes dos professores e colegas e do ambiente que se constrói. Hyde e Jaffee (1998) fazem uma análise comparativa de diversos estudos e concluem que os professores desafiam mais os meninos em tarefas associadas à matemática e aceitam a menor participação das meninas nessas atividades. Rebhorn e Miles (1999) mostram que os professores instigam e elogiam os meninos com mais frequência, enquanto tendem a conceder mais tempo para as meninas realizarem tarefas fáceis.
Meninas que convivem na escola com uma grande proporção de meninos de alto desempenho tendem a ter menos autoconfiança e ambição e menores notas em matemática e ciências. Esse efeito é ainda maior entre meninas com maiores dificuldades acadêmicas. Novamente, a assimetria entre os gêneros não impacta os meninos (Cools et. al., 2019). Mouganie e Wang (2017), por sua vez, mostram que as meninas apresentam melhor performance em matemática e ciências quando estão em turmas formadas apenas por meninas. As diferenças de autoconfiança entre os gêneros, mais uma vez, parecem persistir na vida adulta: de acordo com o estudo de Niederle et. al. (2013), as mulheres têm menos preferências do que os homens por participar de situações competitivas e, mesmo quando estão dispostas, preferem competir apenas com outras mulheres. Por fim, o criterioso estudo de Lavy (2018) mostra evidências fortes da existência de discriminação de gênero entre os professores: as diferenças de notas entre meninos e meninas tendem a ser maiores quando os docentes corrigem os exames sabendo o nome dos estudantes.
Mas o que explicaria esse viés? Será que professores e professoras preferem deliberadamente os meninos às meninas? Provavelmente, não. Esse comportamento pode estar associado às expectativas que os docentes têm sobre os alunos e alunas que, por sua vez, são formadas a partir de suas crenças (talvez inconscientes) sobre as diferenças de habilidades e capacidades entre os gêneros. O mesmo se poderia dizer em relação ao comportamento dos pais.
O resultado, entretanto, é que os ambientes familiar e escolar influenciam os resultados acadêmicos de meninos e meninas de formas distintas. O viés de gênero na escola pode reduzir a autoconfiança e a autoestima das meninas, levando não só a piores desempenhos acadêmicos, como também reduzindo suas chances de completar a educação básica ou ingressar no ensino superior, e à menor inclinação a escolher profissões ligadas às ciências.
Em resumo, não criamos um ambiente propício para que as meninas desenvolvam suas habilidades. Implícita ou explicitamente, não as encorajamos a acreditarem que podem ser bem-sucedidas. Ensinamos a elas que engenharia é coisa de menino e, com isso, fazemos com que invistam menos em sua formação e que obtenham resultados inferiores aos homens na vida profissional e pessoal. Nós, educadores e pais, temos responsabilidade de mudar isso.
Priscilla Albuquerque Tavares é doutora em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV), mestre e bacharel em Economia pela Universidade de São Paulo (USP). É professora da Escola de Economia de São Paulo, da FGV, pesquisadora na área de Economia da Educação e autora de diversos artigos que avaliam impactos de políticas educacionais no Brasil.
Para saber mais sobre o tema:
Bordalo, Pedro, Katie Coffman, Nicola Gennaioli, and Andrei Shleifer. (2019). “Beliefs about Gender.” American Economic Review 109 (3): 739-773.
Cools, Angela; Fernández, Raquel; Patacchini, Eleonora. Girls, Boys, and High Achievers. National Bureau of Economic Research Working Paper Series, No. 25763, April 2019.
Deaux, K., & Lafrance, M. (1998). Gender. In D. T. Gilbert, S. T. Fiske, & G. Lindzey (Eds.), The handbook of social psychology (pp. 788-827). New York, NY, US: McGraw-Hill.
Dossi, G.; Figlio, D.; Giuliano, P.; Sapienza, P. (2019). Born in the Family: Preferences for Boys and the Gender Gap in Math. NBER Working Paper No. 25535.
Hanna, Rema N., and Leigh L. Linden. (2012). “Discrimination in Grading.” American Economic Journal: Economic Policy, 4 (4): 146-68.
Hyde, J. S., & Jafeee, S. (1998). Perspectives From Social and Feminist Psychology. Educational Researcher, 27(5), 14–16.
Lavy, Victor. (2008). “Do Gender Steriotypes Reduce Girls’ or Boys’ Human Capital Outcomes? Evidence from a Natural Experiment.” Journal of Public Economics 92 (10–11): 2083–2105.
Mouganie, Pierre & Wang, Yaojing. (2017). High Performing Peers and Female STEM Choices in School. SSRN Electronic Journal.
Niederle, Muriel, Carmit Segal, and Lise Vesterlund (2013) ‘‘How Costly Is Diversity? Affirmative Action in Light of Gender Differences in Competitiveness,’’ Management Science, 59, 1–16.
Rebhorn, Leslie S. and Dorothy D. Miles. (1999). “High-Stakes Testing: Barrier to Gifted Girls in Mathematics and Science.”
Victor Lavy, Edith Sand. (2018) On the origins of gender gaps in human capital: Short- and long-term consequences of teachers’ biases, Journal of Public Economics, Volume 167, Pages 263-279
Este texto foi originalmente publicado na coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola
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