Conhecer a história da Matemática pode ajudar a antecipar desafios de aprendizagem
Até século XVI, soluções negativas eram desprezadas. Hoje, alguns alunos ainda têm dificuldades em entender operações com números negativos
A história do desenvolvimento de uma ciência, além de nos dizer como certos desafios técnico-filosóficos foram abordados, e eventualmente superados, também nos indica quais deles deveriam merecer atenção maior na hora de se ensinar a tal ciência. Isso é particularmente verdadeiro no caso da história da Matemática e de uma de suas especialidades, a álgebra, assunto que quero explorar nesse artigo.
É claro que não dá para replicar em sala de aula os vários estágios presentes no desenvolvimento histórico da álgebra (ou de qualquer outra área do conhecimento) por conta de sua complexidade. Mas é possível sim identificar nessa história alguns momentos em que determinados obstáculos atrasaram o seu desenvolvimento e como eles foram depois superados. Muitas das dificuldades de ensino da álgebra, ou mesmo da Matemática, podem ser melhor compreendidas se tivermos um bom entendimento desses momentos de superação de obstáculos.
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Para exemplificar o que quero dizer, gostaria de enfocar aqui um desses obstáculos históricos que atrasou o desenvolvimento da álgebra. Em uma primeira aproximação, a história da álgebra pode ser dividida em dois momentos: (i) a resolução de equações algébricas, prática que, em diversos graus de complexidade, pode ser encontrada em registros inclusive da antiguidade; e (ii) a formalização das regras algébricas a partir de um melhor entendimento de seu conceito mais básico: a operação entre números (adição ou multiplicação, por exemplo).
Essa passagem de um momento a outro foi lenta e trabalhosa e dependeu, a nosso ver, de vários fatores. Um deles foi o desafio de se entender melhor o que é efetivamente um número e como ele se relaciona com as operações básicas.
O conceito de número é um conceito abstrato, mesmo considerando que eles surgiram com o propósito bem definido de contagem de objetos. Vale lembrar que registros numéricos encontrados mostram a sua precedência aos registros de uma linguagem escrita.
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A necessidade de contagem, sabemos, surgiu no momento em que nossos ancestrais começaram a abandonar a vida nômade e se tornaram agricultores e criadores de gado. Problemas envolvendo a resolução de equações algébricas surgiram também de questões práticas, proporções ou cálculo de áreas provenientes, por exemplo, de medições de terrenos ou mesmo questões de cunho religioso. O fato é que, inicialmente, os números estavam vinculados a problemas essencialmente geométricos e muitas vezes possuíam “dimensões”. Não à toa, muito da terminologia ainda utilizada por nós possui características geométricas (raiz quadrada ou cúbica, para citar dois exemplos) ao invés de privilegiar um tratamento puramente algébrico.
Com isso, não nos surpreende a dificuldade que os matemáticos tiveram, ao longo da história, com os números negativos. Se pensarmos na resolução de equações como a solução de algum problema que teve sua base na geometria (cálculo de áreas, por exemplo) é mais do que natural interpretar resultados negativos como soluções falsas. De outra forma, se uma equação só apresentasse números negativos como resultados de seus cálculos, o comum era considerar que esse problema não tinha soluções.
Essa interpretação perdurou por muito tempo a considerar que mesmo no século XVI, quando já se sabia resolver equações de terceiro e quarto graus, as soluções obtidas, se negativas, eram desprezadas. A solução de uma equação algébrica era, portanto, por definição, um valor positivo.
É claro que registros de números negativos existiam, muitas vezes para se indicar um débito ou um déficit. No entanto, a compreensão de que estavam no mesmo patamar que os números positivos demorou a se consolidar. A aceitação dos números negativos só começou a partir do entendimento de que haveria a necessidade de se operacionalizar tais números da mesma forma como se fazia com os positivos. A dificuldade era, essencialmente, entender o que deveria ser o produto de dois números negativos. Hoje parece-nos natural que seja um número positivo, mas isso demorou muito a ser aceito.
Não sem razão, os alunos, ao serem introduzidos a essas questões, têm dificuldades em entender o que seria -1 vezes -1. Não é algo muito natural se levarmos em conta a maneira como a operação “vezes” é ensinada no ensino básico, assim como não foi uma questão natural se levarmos em conta o lento desenvolvimento acima mencionado.
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Por isso, é importante motivar o aluno do ensino fundamental com questões contextualizadas envolvendo as operações e evitar, em um primeiro momento, questões que só se preocupem com a resolução do algoritmo das operações. Dito de outra forma, deve-se destacar mais o conceito de operação ao invés de simplesmente ensinar regras operatórias que, muitas vezes, possam não fazer sentido a quem está começando a aprender matemática.
Assim como foi destacada acima a demora na aceitação dos números negativos, é também verdade que o número zero tampouco aparecia nos registros mais antigos. A dificuldade em aceitar esse número é de outra natureza, tem mais a ver com o desenvolvimento de um sistema numérico adequado às operações. Como é bem sabido, não existe uma representação do zero no sistema numérico romano, só para mencionar um exemplo. Voltarei a essas questões nos próximos textos.
Flávio Ulhoa Coelho é professor titular do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), onde atuou como diretor no quadriênio 2010-2014. É também pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e do CNPq. Além de matemático é escritor, tendo publicado 4 livros didáticos em matemática e 7 livros de literaturas infanto-juvenil e adulta.
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