Atraso escolar é maior conforme a proporção de professores fora da área de formação
Estudo analisa dados do Censo Escolar que indicam que quase 1 a cada 4 professores do Ensino Médio não possui formação na disciplina que ministra
Por Fabio Waltenberg e Roberta Costa, para a coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola
Os dados do Censo Escolar 2016 mostram que quase um quarto dos professores do Ensino Médio brasileiro não possuía formação superior compatível com as disciplinas que lecionava. No caso de Sociologia e Filosofia, o total de docentes sem formação na área chegava a 84% e 75%, respectivamente. Em que medida isso interfere no aprendizado do aluno? Como afeta a motivação e o interesse do professor? É necessário que o professor tenha formação estritamente compatível com a disciplina ministrada, ou um bom professor é capaz de ensinar qualquer conteúdo, de qualquer disciplina? Essas são algumas das questões que a dissertação de mestrado de Roberta Costa, defendida em 2018 na Universidade Federal Fluminense (UFF), buscou analisar.
Com base em uma série de estudos conduzidos nos Estados Unidos, pesquisadores como Richard Ingersoll e Deborah Ball sustentam que ensinar uma disciplina em que não é formado é prejudicial ao aprendizado do aluno e pode desmotivar o professor, levando-o, no limite, ao abandono da carreira. Supõe-se que possuir alguma formação na área em que se vai lecionar é condição necessária (não a única, é claro), para que o professor possa conduzir bem sua função.
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Possuir conhecimento do conteúdo específico seria essencial para antecipar as dificuldades enfrentadas pelos alunos, compreendê-las bem e tornar mais sereno e prazeroso o processo de aprendizagem. Um maior domínio do conteúdo também permitiria ao professor ser mais criativo na elaboração de atividades, ao conseguir contemplar experiências, interesses e necessidades de cada tipo de aluno. Mesmo de posse de diretrizes curriculares e material didático, uma boa compreensão de conteúdo específico seria importante para extrair todo o potencial que uma explicação, exercício ou tarefa pode proporcionar.
Pesquisas qualitativas com professores nos seus primeiros anos de carreira mostram que eles se sentem insatisfeitos ao serem alocados para lecionar disciplinas fora de sua área de formação. Isso influencia seu senso de eficácia no exercício de suas atribuições, além de aumentar a carga de trabalho, em razão da necessidade de gastar mais tempo preparando aulas para disciplinas que não dominam (Johnson et al., 2005).
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Os resultados de estudos quantitativos internacionais relacionando área de formação adequada do professor e notas de alunos em testes padronizados não são conclusivos. Alguns encontram uma relação positiva e estatisticamente significativa, principalmente em Matemática e Ciências, enquanto em outros casos os efeitos são muito pequenos.
Estudos sobre o assunto no Brasil
A meta 15 do Plano Nacional de Educação (PNE) determina que todos os professores da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura, na área de conhecimento em que atuam. Para isso, o Inep criou o Indicador de Adequação da Formação Docente, que sintetiza a relação entre a formação inicial dos docentes de uma escola e as disciplinas que eles lecionam, distribuindo os profissionais em cinco grupos. Quando um professor leciona duas disciplinas diferentes para a mesma turma, contam-se duas “docências”:
Distribuição de docências segundo o nível de adequação da formação, Brasil, 2016.
GRUPO | PROPORÇÃO |
1. Docências com formação superior de licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) na mesma área da disciplina que leciona | 60,4% |
2. Docências com formação superior de bacharelado (sem complementação pedagógica) na mesma área da disciplina que leciona | 3,1% |
3. Docências com formação superior de licenciatura (ou bacharelado com complementação pedagógica) em área diferente daquela que leciona | 23,5% |
4. Docências com formação superior não considerada nas categorias anteriores | 6,9% |
5. Docências sem formação superior | 6,1% |
Fonte: Inep
O grupo 1, portanto, representa o ideal (por exemplo, alguém com licenciatura em Matemática ou bacharelado com complementação pedagógica em Matemática dando aulas de Matemática). A atuação fora da área de formação afeta, como já dito, quase um quarto dos professores de ensino médio.
Há ainda uma heterogeneidade entre as disciplinas, como mostra a figura abaixo. Enquanto em Biologia, há uma proporção relativamente baixa de professores sem formação específica (21%), em Artes atinge 60% dos profissionais. Filosofia e Sociologia, disciplinas que só passaram a ser obrigatórias em 2008, aparecem no topo, com a maioria dos docentes sem formação na área:
Docentes do Ensino Médio segundo formação específica e disciplina – Brasil, 2016*
No país, poucos pesquisadores examinaram o impacto de conhecimentos específicos dos professores no desempenho escolar. Fernandes (2013) mostra que alunos alocados a professores com maior nível de conhecimento específico tiveram desempenho melhor em Matemática e Língua Portuguesa. Guimarães et al. (2013) encontram resultado semelhante para Matemática, mas Silva Filho (2017) não. Carmo et al. (2015), único estudo focado no Ensino Médio, concluem que haveria impacto positivo e significativo do indicador de adequação da formação do docente sobre o desempenho escolar.
Na figura abaixo, em que cada ponto representa uma escola, observa-se na linha de tendência (branca) uma relação suavemente positiva entre a proporção de professores com formação adequada e as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de Linguagem e Matemática. Essa relação positiva é uma constatação importante, e que, inclusive, nos deu mais motivação a estudar a questão, mas é preliminar e de forma alguma conclusiva.
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A dissertação mencionada, de Roberta Costa, apoiou-se no acompanhamento de escolas presentes no Censo Escolar, de 2007 a 2016. As variáveis de resultado utilizadas foram: taxa de aprovação, taxa de reprovação, taxa de abandono e distorção idade-série (proporção de alunos com idade superior à recomendada). Uma a uma foram cruzadas com a proporção de docentes sem formação específica observada em cada escola em cada ano. A amostra final foi um painel de quase 30 mil escolas, representando cerca de 86% das escolas do Ensino Médio, 75% dos docentes e 81% dos alunos.
Uma dificuldade metodológica é que professores, escolas e alunos não são pareados de forma aleatória. Por exemplo, de forma geral, alunos com menor conhecimento prévio estudarão em escolas com mais dificuldades, por exemplo, para atrair e manter um corpo docente estável e com formação adequada. Se for observada uma relação positiva entre proporção de professores com formação adequada e, digamos, uma baixa taxa de abandono, não será precipitado concluir que uma causou a outra?
Embora nunca se possa eliminar o problema, a fim de minimizá-lo, o econometrista vale-se de diferentes técnicas. Pode, por exemplo, incluir uma série de “variáveis de controle”, que, por assim dizer, limpam os cálculos, levando em conta essas diferenças contextuais. Além de usar variáveis de controle, no trabalho em questão, também foi usada a correção conhecida como “efeitos fixos”, que ajuda a limpar ainda mais a estimativa, ao retirar de cena tudo aquilo que é específico a cada escola em particular, mas não pode ser observado em variáveis presentes na base de dados – por exemplo, o clima escolar ou a habilidade do diretor na gestão dos recursos físicos e humanos, a pressão de pais e alunos por professores com formação adequada etc.
A proporção de docências sem formação superior adequada (questão central de interesse) apoiou-se na metodologia do Inep: significa que o docente não concluiu graduação compatível com a disciplina, independentemente do tipo de diploma. Isto é, não se distinguem bacharéis de licenciados.
Resultados da pesquisa
Os resultados indicam que o abandono e o atraso escolar são maiores quanto maior é a proporção de professores da escola que ministram disciplinas fora de sua área de formação. Os resultados gerais são robustos para as diferentes regiões do país. Professores sem formação específica enfrentam diferentes dificuldades nas suas atividades docentes e os resultados sugerem que despertar o interesse dos jovens pela escola poderia ser um deles. Contudo, é necessário reconhecer que as magnitudes dos efeitos são baixas. E quanto às outras duas variáveis, aprovação e reprovação, nenhum efeito foi observado.
A docência é recorrentemente vinculada à ideia de vocação ou dom, ao invés de uma profissão que requer instrução e treinamento específicos. O baixo prestígio social atribuído à profissão contribui para isso, pois perpetua a noção de que ensinar requer um nível de habilidade menor que o de outras ocupações. A ideia de que qualquer um pode ser professor pode ser propagada pela falta de exigência de formação específica ou mesmo pela negligência do sistema educacional em reconhecer como um problema a atuação fora da área.
Na última década, o Ensino Médio tem apresentado evolução insatisfatória. O Ideb 2017 da etapa ficou em 3,8, um avanço de apenas 0,1 ponto, após três divulgações estagnado. As taxas de abandono, atraso, aprovação e reprovação melhoraram menos que no Ensino Fundamental.
Será que a grande incidência de professores atuando fora de sua área é parte da explicação? É possível. Mas também parece claro que proibir a alocação de uma turma a um professor sem a formação adequada poderia dificultar o trabalho de diretores e secretários. E, para um aluno, não ter professor algum certamente é pior do que ter um professor com formação inadequada. Ainda é preciso investigar mais sobre as causas e as consequências da docência fora de área. E, mais tarde, conceber políticas públicas que amenizem os problemas decorrentes disso no curto prazo e encaminhem soluções no médio prazo.
*Fabio Waltenberg é doutor em economia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, e professor da Universidade Federal Fluminenese (UFF). Roberta Costa é doutoranda em economia pela UFF
Este texto foi originalmente publicado na Nova Escola
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Para saber mais:
BALL, D. L. Bridging practices: Intertwining content and pedagogy in teaching and learning to teach. Journal of teacher education, v. 51, n. 3, p. 241–247, 2000.
FERNANDES, M. M. Medindo os efeitos do professor na sala de aula: evidências a partir de promoção para professores em São Paulo. Dissertação de mestrado — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013.
GUIMARÃES, R. et al. The effect of teacher content knowledge on student achievement: a quantitative case analysis of six brazilian states. Reuniões da ABAVE, n. 7, p. 265–278, 2013.
INGERSOLL, R. Measuring out-of-field teaching. Manuscrito não publicado, Graduate School of Education, University of Pennsylvania, Philadelphia, PA., 2002.
INGERSOLL, R. M. The problem of underqualified teachers in American secondary schools. Educational researcher, v. 28, n. 2, p. 26–37, 1999.
SILVA FILHO, G. A. d. O efeito da formação inicial do professor sobre o desempenho escolar em matemática nos anos iniciais do ensino fundamental. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS CENTROS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA. 45º Encontro Nacional de Economia. Natal, 2017.